Essa semana, li um texto que falava sobre a arte de ir embora. Já reparou, Lola, como é difícil ir embora? É difícil abrir mão de lugares, pessoas, sentimentos... é difícil abrir mão de quem éramos para abraçarmos quem seremos... aceitar o novo, o surpreendente, a mudança é algo que todo e qualquer ser humano tem medo, reluta em fazer.
Não é impossível, Lola... o problema é que todos nós ficamos muito confortáveis com as coisas conhecidas... se permitir ir embora é se entregar ao desconhecido... é permitir que o amanhã te surpreenda... é acreditar que não se tem controle sobre a própria vida... deixa só eu contar um segredo para vocês: nós não controlamos nada! Apenas temos a ilusória sensação de controle... mas o controle que nossa mente cria para nos confortar é exatamente isso: ilusão... não é real...
Nossa mente, Lola, nessa questão de ir embora (e em quase todas as questões de nossas vidas) é nossa pior inimiga... porque ela cria cenários... possibilidades... esperanças... mas, quando olhamos de verdade para nós e para o que nos rodeia, percebemos que todas essas construções mentais nascem de nosso apego... das ilusões que construímos sobre nós e sobre os outros... é quando percebemos que muitas vezes não estamos vivendo na realidade, mas no sonho... e viver no sonho é algo árido por ser infecundo e irreal... é preciso ir embora... desapegar... ter coragem... arriscar fluir e viver fora do sonho... o sonho, Lola, é nossa zona de conforto... é o lugar onde tudo dará certo, de uma forma ou outra dará certo... o sonho nos tolhe de perceber os arredores e de ver que a vida é maior, mais bonita e mais simples quando nos despimos do sonho e damos o primeiro passo para o real, o tempo presente... o aqui e agora, único tempo real....
Oswaldo Montenegro tem uma música muito bonita e que trata exatamente dessa questão do ir embora... a música se chama 'Estrada Nova'... ela começa assim...
"Eu conheço o medo de ir embora; não saber o que fazer com a mão; gritar para o mundo e saber; que o mundo não presta atenção"... como eu disse antes, ir embora dá um medo da gota serena... porque ao começarmos esse processo de ir embora ficamos perdidos, sem saber bem o que fazer ou como agir... e percebemos que esse processo de ir embora é nosso, apenas nós podemos fazê-lo, vivê-lo, senti-lo... ninguém mais irá compartilhar isso conosco (o mundo não presta atenção)... ir embora é um processo pessoal de cada um... esse abraçar a mudança é pessoal e intransferível...
"Eu conheço o medo de ir embora; embora não pareça, a dor vai passar; lembra se puder; se não der, esqueça; de algum jeito vai passar..." a arte de ir embora dói... e ir embora dói porque somos humanos e como seres humanos criamos expectativas, apego, ilusões... nos apegamos a lugares, a hábitos, a pessoas, sentimentos... dói nos permitir mudar.. dói deixar-nos ir... dói deixar o outro ir... dói abrir mão dos hábitos e sentimentos... dói abraçar a mudança... é o processo de se permitir ver o novo sol que começa a surgir no final da curva... é a dor do futuro incerto e desconhecido... e por isso tentamos lembrar de tudo aquilo que tínhamos ou temos antes de ir embora... mas é hora de esquecer tudo isso... por mais que doa... porque, a dor vai passar e a vida poderá então fluir...
"O sol já nasceu na estrada nova; e mesmo que eu impeça, ele vai brilhar; [...] eu conheço o medo de ir embora; o futuro agarra a sua mão; será que é o trem que passou; ou passou quem fica na estação?; eu conheço o medo de ir embora; e nada que interessa se pode guardar"... o sol já nasceu na estrada nova... é isso, Lola... a
arte de ir embora é difícil e dolorida porque somos teimosos demais e medrosos demais em abrir mão do necessário para podermos viver uma vida real e plena... mas, o futuro, qual estrada nova se descortina a nossa frente e chega para todos nós... mesmo que tentemos impedir esse sol que chega... mesmo assim, ele irá brilhar... porque esse é o movimento da vida... a vida nos compele a fluir com ela e a viver o novo... a sermos o novo... o ir embora é apenas o sair do lugar? ou o ir embora é também, e principalmente, ficar no lugar mais sair de si mesmo? é o trem que vai ou a pessoa que fica? eu acredito que o processo de ir embora se dá nesses dois universos...ser o trem que vai para outro lugar é difícil, mas é um movimento mais fácil... agora, ser o alguém que fica e vai embora de si mesmo... aí, Lola, está o movimento mais difícil... tentamos dar significados ao que interessa e percebemos que nada daquilo que interessava poderá ser guardado... porque nós fomos embora de nós e antes o que era muito importante passa a ter menos importância... se modifica... se transforma... porque agora, nesse momento em que estamos indo embora de nós, as coisas novas surgem e ganham brilho insuspeito... ocupam lugares novos que antes eram vividos por interesses antigos...
