As Dores que nos habitam...

Oi, Lola! Cê sabe o quanto sou fã do Caio Fernando Abreu, né?!? Pois então, no meio de milhares de outras coisas que me peguei fazendo hoje, eis que tirei um tempinho para ler o Caio... e ao ler o Caio comecei a pensar em alguns amigos e em suas dores... em como essas dores são tão comuns a nós todos... nenhum de nós escapa delas... é quase como um ritual necessário para se seguir vivendo... o "sentir dor", quero dizer...

O Caio certa vez escreveu "eu me sinto às vezes tão frágil, queria me debruçar em alguém, em alguma coisa; alguma segurança; invento estorinhas para mim mesmo o tempo todo, me dou força, mas a sensação de estar sozinho não me larga"... Quantas vezes essa sensação de solidão nos toma de assalto e nos deixa desnorteados?!? Muitas vezes, Lola... vezes sem conta...

Ao refletir sobre isso comecei a rever o álbum de fotografia da minha mente atrás dos amigos que sentiram essa solidão... essa dor de "estar sozinho" de forma mais profunda e dolorida... porque, Lola, quando permitimos que essa sensação de solidão profunda nos invada, não conseguimos perceber que na verdade não estamos sozinhos... não conseguimos vislumbrar as mãos estendidas ao longo da estrada... apenas encaramos a sombra como se aquilo fosse o começo e o fim de nosso mundinho caótico... 

Lembrei de Antonioni... um amigo que durante anos foi um irmão para mim e por conta da reverberação dessas dores que ele trazia consigo, a ponte entre nós foi queimada como se houvesse havido outro incêndio em Roma... às vezes, as dores são tão profundas e o sentimento de solidão está tão enraizado que, por não vermos outra saída, flagelamos o nosso corpo com coisas que nos aniquilam lentamente e matamos pouco a pouco o amor que tínhamos em nossa vida... Foi assim com Antonioni... ele enveredou pelo caminho do "andar sozinho" e eu fiquei à margem, parada na estrada em que não mais caminharia... Falar da dor dele, e também da minha, não é tarefa fácil... Ano passado, também nesse período de "fim de ano", novembro, eu, aqui em Coimbra, soube que a nossa ponte não seria reconstruída... ele tinha deixado de existir fisicamente... foi pra outro patamar... e aquela dor... dor das solidões não mais compartilhadas foi extinta como se nunca ali estivesse vivido... mas, esse é um exemplo de dor que nos cega e nos faz enveredar por caminhos que inevitavelmente podem levar a desintegração total de nossa existência... (muita paz aí nesse novo mundo pra você, "Oni"!)

As dores que nos habitam nem sempre são explicáveis... elas estão ali, latentes... tentando nos arrastar para sua espiral desarmônica e nos tirar do "eixo"... São dores d'alma... e essas dores não se diluem sem compromisso nosso em eliminá-las... em tentar fragmentá-las.... é mais fácil abraçá-las e buscar fugas e subterfúgios para "amenizá-las".... esquecemos nesse processo de fuga que a fuga não é nada mais que prisão sem grades....

Tenho dores... como o Caio... como o "Oni"... como você e como aquele ali... já enveredei pelo caminho da fuga também... já transgredi... já busquei entorpecer as dores latentes... já me perdi... mas hoje eu me encontrei... eu acordei no meio das dores... as descasquei... as despi... me despi de quem eu era... me reinventei... ainda me reinvento todos os dias... porque as dores ainda existem... dores por aquilo que poderia ter sido... por aquilo que não foi... pela perda... pela distância... pela solidão... pelo autoconhecimento... essa é uma das piores dores... é a dor de ver-se tal e qual se é... conseguir enxergar a luz e também as sombras... e mesmo sentindo essa dor do conhecer-se a si mesmo, conseguir emergir disso e ir descartando o que não se quer mais, aprimorando o que se quer manter... porque é assim, apenas assim, ao nos propormos o autoconhecimento que as dores são eliminadas até chegar o momento em que percebemos que essas dores não eram nada além de manifestações equivocadas do ego... é ao desapegar-se de si mesmo que consegue-se viver de forma plena a vida... sem dores... sem medos... sem solidões...

Por isso, Lola, o meu conselho é que escutes o chamado da vida e, se a dor aparecer, olha bem pra ela analise-a e fragmente-a... porque ninguém, mas ninguém mesmo, evolui nesse mundo... nem se ilumina... se não experimentar um pouco de dor, solidão e silêncios.... 

Então, querida amiga, quando a vida chamar, vai!!! Com medo, dor e tudo... apenas vai e vive!!!!

(…) Começava a ver nas pessoas o que elas não sabiam de si mesmas, e isso era ainda mais terrível. O que elas não sabiam de si era tão assustador que me sentia como se tivesse violado uma sepultura fechada havia vários séculos. A maldição cairia sobre mim: ninguém me perdoaria jamais se soubesse que eu ousara. Ninguém me perdoaria se soubesse que eu sei o que elas são, o que elas eram. — Caio Fernando Abreu

É Preciso Calar para Conseguir Ouvir...

 

 

 

Em sua música "Se eu quiser falar com Deus", Gilberto Gil diz sabiamente: "se eu quiser falar com Deus, tenho que ficar a sós, tenho que apagar a luz, tenho que calar a voz [...]"... pois é, Lola, se quisermos ouvir, teremos que embarcar numa viagem de silêncio... saber calar para poder ouvir é tarefa, a priori, simples... mas, no mundo em que vivemos é mais difícil que sermos nós mesmos no meio do turbilhão que nos arrasta prum mundo de relações e conexões líquidas, fugazes.. vazias...

 

O ouvir é o ponto crucial para se adquirir o conhecimento... vejamos as possibilidades que surgem quando silenciamos nossas vozes (e nossos egos) e começamos o aprendizado da escuta...

Quantos de nós parou por cinco minutos, nos últimos dias, para perceber o canto dos pássaros pela rua?!? Muito poucos, acredito. Simplesmente porque, todos nós andamos apressados, falando ao telefone, mandando mensagens... conectados com outros seres humanos e ao mesmo tempo tão solitários que o "ouvir" passa longe de nossas prioridades, né Lola?!? 

Se conseguíssemos silenciar nossa loucura diária, conseguiríamos ouvir o universo que nos cerca... perceberíamos a beleza que é ouvir um pássaro cantar ao amanhecer... conseguiríamos distinguir o sussurrar do vento a nos saudar e amenizar nosso calor... seríamos preenchidos pelo farfalhar das folhas nas árvores e perceberíamos sua singeleza... ah, Lola, por não saber ouvir, quanta coisa perdemos em nosso cotidiano!

Nosso mal é falar demais... nós nunca conseguimos nos calar... parecemos mais uma peça publicitária onde ouvir apenas nossa própria voz é o ápice da felicidade... felicidade vazia e fugaz... é por isso que muitos não conseguem ficar sozinhos... na solidão, Lola, paramos de falar e começamos a ouvir... muitas vezes ouvimos nossa consciência... aquela mesma que calamos tanto nos atos que cometemos diariamente... quando estamos na solidão de nós mesmos, começamos a verdadeiramente ouvir-nos e isso é dolorido para quem se acostumou a ouvir apenas a voz das máscaras cotidianas... mas, o estar sozinho derruba as máscaras e nos faz ver-nos e ouvir-nos sem disfarces, sem subterfúgios... ali, na solidão da casa ou do quarto vazios, nos encontramos em carne viva... e, ao calarmos às vozes que queremos "apresentar" no cotidiano, começamos, finalmente, a ouvir a única voz que tem importância: a voz de nossa alma...

Mas, Lola, a arte de ouvir não é importante somente para o "autoconhecimento" ou para conhecer o universo... claro que não, minha amiga!! A arte de ouvir é essencial para se conectar de forma real ao outro!

Lola, você já passou pela experiência de conhecer alguém e ao se sentar em algum lugar com essa pessoa, perceber que aquele ser humano a sua frente, só sabe falar?!? Já?!? Eu também! Existe coisa pior, Lola, do que estar com alguém que não nos ouve?!? Alguém que apenas "discursa" é alguém com medo... sim, Lola, medo! Aqueles que apenas falam e nunca ouvem têm um medo terrível de deixar-se conhecer... de se permitir escutar o que outro ser humano possa lhe dizer... é o medo de conectar-se com o outro de uma forma plena e irrevogável... 

Veja, doar nosso tempo para alguém é um dos maiores presentes que podemos conceder... eu já falei disso aqui... mas, ouvir alguém é tão importante quanto! Tente fazer a experiência, Lola! Sente-se com alguém e apenas escute... quantas coisas poderiam ser melhores nesse mundo se aplicássemos a arte de ouvir em nossas vidas cotidianas... Já parou para pensar que se ouvíssemos mais e falássemos menos, poderíamos ter auxiliado amigos, conhecidos, em suas lutas?!? Poderíamos mudar o curso da vida de alguém... porque, muitas vezes, Lola, a gente só precisa de alguém que nos escute... que esteja ali para captar as entrelinhas do que estamos dizendo... ao aprendermos a ouvir, percebemos as pessoas de outra forma... as conhecemos a fundo... as compreendemos e muitas vezes podemos nos surpreender... tudo isso pelo simples fato de ouvir!

E no amor? Você me pergunta, Lola... Ah, minha amiga! No amor é que precisamos saber ouvir! Já pensou uma relação amorosa onde apenas se "fala" e nunca se "escuta"?!? Como seria vazia e breve?!? O silêncio e a arte de ouvir é o que constrói o amor, Lola... amor só pode crescer quando escutamos sua voz... amor não nasce quando estamos apenas "falando"... não, querida, o amor precisa de silêncio... de bons ouvidos... porque se não o ouvirmos como saberemos que ele está ali?!? Não, Lola, isso não é amor.. isso é sexo... atração você pode ter num caos balbuciante... mas amor é semente frágil que precisa de cuidados, silêncios... boa visão e coração aberto para que ele possa se aboletar e crescer...

Quem não sabe ouvir, não consegue amar... Um dos pontos da arte de ouvir é conseguir olhar para o outro como ele é... é compreender pelos "ouvidos" as peculiaridades do outro, seus medos, seus sonhos, seus desejos, enfim, sua essência mais profunda... é quando paramos para ouvir o outro que amamos... quando exercemos o ouvir estamos nos colocando no lugar do outro, porque é assim que conseguiremos ajudá-lo, aconselhá-lo, conhecê-lo... quando ouvimos de verdade alguém doamos a essa pessoa nosso tempo... doamos um pouco de nós, porque para ouvir precisamos de silêncio e é no silêncio que conseguimos ser nós mesmos... quando ouvimos derrubamos nossas couraças... nossas armaduras... abraçamos o outro que nos fala como se fora criança pequena precisando de alento... e é aí, no ouvir que o amor surge em nossas vidas... quebra nossas barreiras e nos transporta prum mundo ímpar, onde os sons dos pássaros, do vento e das árvores serão companheiros fiéis a caminhar conosco... e o nosso coração começará  a falar penas aquilo que verdadeiramente importa!

Que saibamos ouvir para poder entender a imensidão que nos cerca... que tenhamos quem nos ouça para diminuir um pouco os pesos que carregamos... muitas vezes, podemos impedir fatalidades apenas por nos dispormos a ouvir alguém... podemos deixar a vida de alguém mais iluminada apenas por nos abrirmos para ouvir um desabafo...

Para ser luz nesse mundo, Lola, é precisa saber calar e aprender a ouvir!!!